A Revolução dos Pluriaptos

28 fevereiro 2017 0 comentrios Eliziane

Pluriaptos são pessoas aptas para explorar muitas  possibilidades  simultaneamente.

A primeira vez que ouvi o termo pluriapto foi com Pierre Weil, há mais de vinte anos. Ele falava sobre a normose gerada pela perversa realidade do chamado mercado de trabalho, que anula o que temos de mais precioso e singular – nossa vocação – em nome da necessidade de definição de uma identidade profissional. Nesse contexto ele falava sobre os pluriaptos, pessoas que sentem inclinação para várias coisas que podem estar em campos de atividade bem diferentes. A vocação dos pluriaptos está no desejo de explorar muitas possibilidades do mundo e de si mesmos. São aptos para várias coisas simultaneamente. O que Weil advertia é que existe o risco de que essas pessoas acabem não se realizando em nenhuma delas. Esse é o conflito do pluriapto: precisar escolher e sentir que vai renunciar a outras possibilidades atraentes nas quais se sairia igualmente bem.

A questão é: por que precisamos escolher e renunciar ao que nos traria plena realização e evolução? De onde vem essa redução do nosso potencial ao que é funcional do ponto de vista do mercado? Essa é a lógica da sociedade industrial na qual as pessoas são formadas desde cedo para que se adaptem a um modo de vida baseado em produção e consumo.  Por que não podemos fazer várias coisas? A resposta mais óbvia é que não existe tempo suficiente pra isso. O modelo de trabalho tradicional exige dedicação de pelo menos 40 horas por semana. Se você estiver num trabalho cuja escolha tenha sido baseada somente na segurança financeira, com pouca ou nenhuma realização, o tempo pra fazer algo que traga felicidade é mínimo. Nessa lacuna é que entra o consumo que compensa a não realização. Você também pode ter um hobby, mas não é disso que o pluriapto precisa. Não dá pra ser feliz só nas horas vagas.

Pessoas com muitas aptidões e que fazem várias coisas são vistas como imaturas e sem foco. Na visão de mercado elas precisam se definir e seguir toda a vida profissional nessa atividade. Conheci uma psicóloga que também era vocalista de uma banda e cantava em bares à noite. Ela evitava falar sobre essa outra profissão no ambiente da psicologia com receio de que isso afetasse sua credibilidade como psicóloga. Na empresa em que trabalhei havia um executivo da área financeira que era baixista de uma banda de jazz e tocava em pubs da cidade. Poucas pessoas sabiam disso.

Existem pluriaptos famosos como Bruce Dickinson, vocalista do Iron Maiden, que, com igual talento, é piloto de avião (ele que pilota o Boeing do Iron), esgrimista, historiador, ator, roteirista, mestre cervejeiro e doutor em música. A que ele deveria renunciar? Michelangelo foi pintor, escultor, arquiteto, poeta e considerado um dos maiores gênios da história da arte do ocidente. A que ele deveria ter renunciado? Leonardo da Vinci foi pintor, escultor, anatomista, botânico, arquiteto, inventor, matemático, engenheiro – um homem com uma curiosidade ilimitada e múltiplos talentos. Imagina se esses homens vivessem hoje com alguém dizendo “o mercado exige que você tenha foco”?

Talvez todos nós sejamos pluriaptos, mas desde o começo da vida escolar nosso potencial e curiosidade vão sendo reprimidos. E hoje ainda mais. Crianças que não conseguem ficar sentadas em uma sala de aula engolindo conteúdos fragmentados e desconectados de sua realidade são tachadas de hiperativas. Até o final da adolescência é preciso saber qual será a opção no vestibular, de preferência algo que dê dinheiro. E assim entramos todos no exército dos adultos com uma vida profissional definida. A maioria acaba renunciando aos anseios da alma e se torna um especialista e bom executor do que o mercado pede. O pluriapto é transdisciplinar e transgressor. Talvez sejam talentos que se recusam a ser domesticados para o chamado mercado.

A boa notícia é que estamos num momento de transição – que surge como crise – mas que significa a possibilidade de questionarmos a lógica da sociedade industrial. O mundo do trabalho passa por profundas mudanças e aquilo que foi garantia já não é mais. O emprego está acabando. O trabalho como principal elemento gerador de identidade pode estar com os dias contados. Toda a crise tem em si a semente da nova realidade. Na crise do mercado de trabalho está embutida a possibilidade de reinvenção da sociedade. A cultura do consumo está baseada na insatisfação do espírito pelo potencial humano não realizado. Cada um pode ser muitas coisas porque o que nos define não é um rótulo profissional. A lógica do “produzir e consumir” da sociedade industrial está dando lugar à dupla “versatilidade e criatividade” dos pluriaptos.

Publicado por Sandra Felicidade